averno
substantivo masculino
m.q. INFERNO (mit).
adjetivo m.q. AVERNAL.
Origem:
ETIM(a1580) top. latim Avernus,i 'lago Averno (Campânia), onde os poetas situam uma das entradas para o inferno', p.ext. 'Inferno'
Definição do dicionário de Oxford.
Desde que minha paixão por Louise Glück começou, sempre escrevia sobre ela em posts do Instagram. Eram retalhos de como eu me sentia em relação a poesia da autora e depois em relação a sua morte. Achei aqui na Newsletter o espaço ideal para colar essa colcha de retalhos textuais & sentimentais em um só lugar.
Do que eu quero falar quando falo de poesia?
Todo dia eu acordava e tinha um sentimento: a poesia não era feita para mim.
Na faculdade, não queria analisar poemas, fazer escansão e pensar sobre sílabas métricas, não queria saber se era um soneto ou um haicai, não queria contar estrofes, definir um monóstico, ou septilha — pelo menos não só isso. Eu queria sentir o que todos sentem lendo poesia.
Qual é seu ponto? Sempre me questionava quando terminava de analisar um poema xerocado entregue pela professora. E desde quando precisava ter ponto algum? Não precisava, mas por vezes insistia em achar algum.
Tentei todos os cânones da academia, tentei também as consagradas do Pinterest e do Tumblr, como Dickinson, Plath, Sexton, e até mesmo o Vuong, mas nada adiantou. Eu ainda estava em busca do meu Poeta.
Então um milagre, como no milagre das folhas de Clarice, aconteceu.
Averno. O nome, o que ele significa literalmente e metaforicamente, me chamou atenção — os antigos romanos acreditavam que era uma passagem para o submundo. Comprei, li, grifei, risquei, decorei poemas inteiros e os reescrevi nos meus cadernos, compartilhei fotos com amigos, vi e revi entrevistas. Eu queria escrever como ela, me comunicar como ela, me vestir como ela, ser como ela.
Desejava uma conversa a sós, mas não para tentar entendê-la, mas para me entender, entender esse meu grande fascínio. Seus poemas servem como um oráculo particular, onde encontro respostas de perguntas que nunca nem fiz, perguntas que nem existem, mas que são sempre respondidas.
Escrevendo assim, parece tão melodramático, tão teatral. Mas então, como explicar o que não pode ser explicado? Vamos abraçar o melodrama e a teatralidade ao menos uma vez. Talvez agora, nesse momento da minha vida, eu esteja vendo grandes significados em todas as coisas. E não é isso que os leitores de poesia fazem? Não é sobre isso que os poetas escrevem?
Se você ainda não achou o seu Poeta, não se preocupe, ele está à sua espera e estará para sempre. Pode levar tempo, mas lembre-se: o tempo é subjetivo para a poesia.
É muito difícil escrever sobre poesia. É muito pessoal. Quando escrevo sobre uma obra de ficção, tenho um enredo, ou pelo menos um fio condutor, que posso mostrar ao leitor do meu texto sobre o que ele encontrará na obra. Com a poesia é mais complicado e mais complexo. Como convencer alguém a ler um poeta, se o que eu senti lendo, o outro, pode não sentir?
Segundo o ensaísta e crítico francês Charles Du Bos, “Cada vez que um homem frente a uma obra literária – qualquer que tenha sido a época em que foi criada – consegue emocionar-se e reviver em si os sentimentos que comoveram o autor no instante em que compôs, opera-se o efeito do sinfronismo, flui a onda maravilhosa de sintonia espiritual capaz de aproximar simpaticamente a dois seres, mais além do tempo e do espaço. A literatura é veículo sinfrônico que apaga as distâncias e as idades conjuradas pela emoção”. Talvez por isso, na universidade, não me identifiquei com os poemas em sala. Se conectar com uma poesia, com um poeta, é exatamente isso, é algo íntimo, algo seu & do autor, um sentimento impossível de ser compartilhado.
Vencedora do Nobel de 2020, ‘‘por sua inconfundível voz poética, que torna universal a existência individual’’, segundo a Academia Sueca, Louise Elisabeth Glück, nasceu em Nova York em 22 de abril de 1943. A academia também a comparou com a poeta do século 19, Emily Dickinson, pois assemelham-se na ‘‘severidade e relutância em aceitar princípios simples da fé”. Antes dela, a única poeta vencedora do Nobel foi Wislawa Szymborska, em 1996, e outra poeta que admiro muito.
Lançado pela Companhia das Letras em 2021, Poemas (2006 – 2014), possui três livros da autora. O primeiro deles é Averno, que deu o nome a essa Newsletter, lançado originalmente em 2006 e traduzido por Heloisa Jahn. Nesse primeiro livro da coletânea, os poemas perpassam pelo mito de Perséfone e Hades e seus desdobramentos.
No segundo livro, Uma vida no interior (A Village Life, no original), lançado originalmente em 2009 e com tradução de Bruna Beber, os poemas contam sobre a vida em um vilarejo, seus moradores, seus costumes e a vida no campo.
Já no terceiro, Noite fiel e virtuosa (Faithful and Virtuous Night, no original), lançado em 2014 e com tradução de Marília Garcia, os temas são mais subjetivos. Os poemas tratam sobre solidão, contemplações, morte e melancolia. Aqui, Louise escreve poemas que são pequenas ficções, quase prosas.
Uma obra de ficção
Quando virei a última página, depois de muitas noites, uma onda de tristeza me envolveu. Onde estavam todas aquelas pessoas que pareciam tão reais? Para desanuviar, saí para dar uma volta na noite; instintivamente, acendi um cigarro. No escuro, o brilho do cigarro parecia um fogo aceso por um sobrevivente. Mas quem poderia ver essa luz, esse pontinho no meio de infinitas estrelas? Parei por um tempo no escuro, o cigarro uma brasa que brilhava e reduzia de tamanho, cada tragada me destruía um pouco mais. Ela era tão pequena e tão breve. Breve, bem breve, mas agora estava aqui dentro, onde as estrelas jamais poderiam estar.
Tradução de Marília Garcia (Noite fiel e virtuosa)
Seu último livro publicado no Brasil, Receitas de inverno da comunidade (2022), com outra tradução de Heloisa Jahn, possui 15 poemas, e foi o primeiro livro lançado da autora após vencer o prêmio Nobel. Logo que terminei a leitura desse novo livro, eu senti como se um compilado de temas que percorreram sua carreira de poeta, estivessem presentes. São poemas com uma beleza austera, uma melancólica interior e nostálgica. Uma urgência e ao mesmo tempo uma timidez de contar o que está no papel.
Vale ressaltar que as quatro — e ótimas — traduções foram feitas por poetas ou tradutoras de longa data e referência no Brasil. Quem mais poderia transmitir o que um poeta quer dizer, se não, outro poeta ou alguém com imensa sensibilidade?
ECOS
1.
Houve um tempo em que eu podia imaginar minha alma
podia imaginar minha morte.
Quando eu imaginava minha morte
minha alma morria. Disso
me lembro claramente.
Meu corpo persistia.
Não prosperava, mas persistia.
Por quê, não sei.
2.
Quando eu ainda era muito pequena
meus pais se mudaram para um valezinho
rodeado de montanhas
no que chamavam terra dos lagos.
Da nossa horta
dava para ver as montanhas
cobertas de neve, mesmo no verão.
Me lembro de um tipo de paz
que nunca mais encontrei.
Um pouco mais tarde, tomei a decisão
de que seria artista,
para dar voz a essas impressões
3.
O resto já contei a vocês.
Alguns anos de fluência, depois
o longo silêncio, feito o silêncio do vale
antes de as montanhas devolverem
sua própria voz transformada em voz da natureza.
Esse silêncio é meu companheiro agora.
Pergunto: do que morreu minha alma?
e o silencio responde
se a sua alma morreu, de quem e a vida
que você esta vivendo e
quando você se tornou essa pessoa?
Tradução de Heloisa Jahn (Averno)
Em uma entrevista no Youtube para o canal Biblioteca Mário de Andrade, Heloisa Jahn (tradutora de Averno e de Receitas de inverno da comunidade), comentou como é trabalhoso traduzir poesia. Segundo ela, às vezes uma tradução literal para o Português não transmite o que o autor quer manifestar, sendo o trabalho do tradutor, ter a liberdade de mudar algumas palavras para poder transmitir o que certa frase do poema realmente quer passar. Isso exige sensibilidade, habilidade, conhecimento e domínio da linguagem.
Como leitor, eu nunca tinha passado pela perda de um autor favorito. Ou conhecia eles já mortos, ou achava que viveriam para sempre. Nunca um meio termo. Acompanhei quando o ídolo musical de um amigo morreu e ele ficou devastado, mas não pensava em escritores dessa forma. Escritores são ídolos?
A Louise me marcou de diferentes maneiras, e a notícia da sua morte no ano passado (2023), foi uma surpresa. Ela me re-apresentou a poesia. Tem presente e legado maior que esse?
Nunca a conheci — ou talvez a conheci demais —, nunca a encontrei, mas certamente as palavras dela me encontraram. Fico feliz que ela tenha ganhado o Nobel e que milhares de pessoas tenham descoberto seu trabalho enquanto ela ainda estava viva, assim como eu.
Louise deixou seu legado, e mesmo depois que eu morrer, que você morrer, haverá alguém, assim como eu neste momento, escrevendo sobre ela, sobre como seus poemas a marcaram e sobre como ela foi importante para essa pessoa.
É uma conexão quase metafísica.
Esse é o poder da literatura.
"Como leitor, eu nunca tinha passado pela perda de um autor favorito. Ou conhecia eles já mortos, ou achava que viveriam para sempre. Nunca um meio termo. Acompanhei quando o ídolo musical de um amigo morreu e ele ficou devastado, mas não pensava em escritores dessa forma. Escritores são ídolos? A Louise me marcou de diferentes maneiras, e a notícia da sua morte no ano passado (2023), foi uma surpresa. Ela me re-apresentou a poesia. Tem presente e legado maior que esse?"
Meu trecho favorito da news.
Conheço a Louise, mas nunca li uma obra completa dela - agora que você nos apresentou dessa forma, não tem como não querer me entregar e mergulhar no legado dela!
Amei, João!
Demais, João!