O que seria um livro vivo? Um livro que fica na sua cabeça e faz você escrever textos e mais textos sobre ele? Também. Mas, quando falo sobre livro vivo, quero dizer aquele que passa de mãos em mãos, aquele que você grifa, risca, amassa, quebra a lombada, leva na bolsa. Aquele que vive com você, no seu cotidiano: em casa, no trabalho, na faculdade, nas filas do banco. O livro que passeia na sua ecobag, que tem como vizinho os batons, as notas fiscais, a chave de casa, os recibos, os papéis de bala, os cartões de crédito. Quando esse livro morrer, ou melhor, quando ele estiver na prateleira de outra pessoa ou um sebo com outros vizinhos, a vida dele vai recomeçar assim que alguém achá-lo.
Conversando com meu amigo Rodrigo, que também tem uma newsletter, ele me perguntou se eu grifava e marcava livros. Sim! Cheguei ao ponto de, quando estava apaixonado, se uma frase de algum livro me lembrava dessa pessoa, eu escrevia suas iniciais nas margens, com algum lembrete. Anos depois, ao reler o livro, me deparava com aquela inicial. Só sabia rir (ou chorar)!
Terminei recentemente o livro Garota, Interrompida, da Susanna Kaysen e com tradução de Márcia Serra. Um livro de memórias sobre a internação de Susanna em um hospital psiquiátrico por dois anos, em 1967, quando ela tinha apenas 18 anos. Ele estava parado na minha estante há anos, e, na minha cabeça, eu achava que ainda não o tinha lido. Só que, quando comecei a ler e cheguei na metade do livro, encontrei anotações minhas, e anotações pesadas. Eu abandonei o livro no meio? Li tudo? Era uma passagem sobre a primavera, e havia uma anotação sobre um dos meus amigos virtuais que cometeu suicídio nessa época do ano. Foi um choque ler aquilo, não só porque o livro também tratava desse assunto, mas porque havia uma anotação pessoal minha sobre isso. Não me lembrava daquela anotação e nem do livro em si. Talvez o livro tenha se misturado com as memórias do filme (aquele com a Winona Ryder e Angelina Jolie), ou eu tenha resolvido esquecer que o tinha lido por motivos pessoais. Acontece que esse livro se tornou a extensão de um diário. Do meu diário. Ele carrega uma história, a de Susanna, mas também a minha história e a do Renato, meu amigo.
Quando encontramos livros em sebos, eles também carregam uma história. É como um palimpsesto de vidas. Não há nada mais interessante do que achar um livro em um sebo com anotações ou uma dedicatória. Por que aquela frase foi grifada? O que significa essa anotação? O que estava passando na cabeça dessa pessoa? E essa dedicatória? Por que esse livro foi parar aqui? São histórias, dentro de mais histórias, dentro de mais histórias, dentro da sua história.
Lembro que o primeiro livro que comprei em um sebo foi Ponte para Terabítia, de Katherine Paterson, na pré-adolescência. Fiquei encantado com o fato de que pessoas realmente deixavam livros incríveis naquele lugar. A partir daí, sempre torcia para encontrar alguma anotação ou algo dentro dos livros que adquiria em sebos.
Conversando com minha amiga Gabi, uma das fundadoras do Livrismo (um bookgram e um clube de leitura focado em autoria feminina brasileira), ela me lembrou que já participou de um projeto chamado livro viajante, e resolvi chamá-la para falar sobre a experiência:
Há uns anos atrás, mais precisamente em 2017, foi publicado no Brasil “Um amor incômodo”, da Elena Ferrante.
Em um grupo de amigas do WhatsApp surgiu a ideia de fazermos um livro viajante - onde cada uma leria, deixaria suas impressões com uma cor de caneta diferente e enviaria para a outra.
O projeto durou alguns meses e rodou o país inteiro - do Nordeste até o Sul. E foi muito legal! Especialmente no final, quando você pega o livro e vê ele repleto de rabiscos, desenhos, reflexões escritas, posts its. Gosto demais dessa ideia do livro vivo, repleto de anotações distintas - amo observar como cada leitor recebe a história de uma maneira diferente. Acho um charme a lombada desgastada, as folhas manchadas.
Hoje, no Livrismo - meu Instagram literário - temos um projeto no catarse com essa modalidade: por 3 meses lemos um livro e ele vai viajando Brasil afora. Começou em São Paulo, veio pro Rio de Janeiro e está em São José dos Campos.
Nunca vou entender esse apego ao livro físico. A entidade livro, como se fosse um Deus que precisa ficar intocável em um altar. Lembro de ter visto um reels sobre como ‘‘ler sem quebrar a lombada do livro’’, e a pessoa mal abria o exemplar, precisava apoiá-lo na mesa em uma posição super desconfortável. Para quê?
Como é bom ver lombadas quebradas, marcas de café nas páginas, riscos desconhecidos, fios de cabelo, pelos de gato ou cachorro. São marcas de que uma pessoa viva leu esse livro. Alguém com pensamentos complexos e sentimentos conflituosos. Alguém com um coração. Não só estou deixando esse livro vivo, como também estou mostrando que eu ainda estou aqui.
Que lindo! Quando era pequena tinha pavor de riscar os livros, mas agora que cresci tenho necessidade de conversar com o livro. Risco muito e anoto tudo oq penso. Também é bom para comparar numa releitura, ver se ainda tenho a mesma opinião. Amei teu texto!!!
lindo texto! por tanto tempo relutei com marcões… algo nelas faziam-me sentir condenável, por algum motivo. mas depois que passei a compreender essa vivacidade que você trouxe aqui e a gostar das orelhas amassadas e dos vincos nas capas, o ato de ler passou a fazer ainda mais sentido 🤍