Garganta Aberta de Henry Hoke & conversa com o autor.
Um livro narrado por um leão queer que vive embaixo dos letreiros de Hollywood.
um leão queer e faminto vive abaixo dos letreiros de hollywood
ele observa os caminhantes
sente cheiros
presencia queimadas
testemunha terremotos
problemas com o pai (quem não?)
e está sozinho (quem também não?)
quanto mais ele se aproxima da humanidade, mais perdido ele fica
quanto mais ele se impregna com os cheiros humanos, mais ele se odeia.
Garganta Aberta é um romance inusitado. Ele é escrito em fragmentos/versos, sem pontuação e até mesmo com uma ortografia diferente em alguns momentos. O que esperar de uma história narrada por um animal?
O livro foi traduzido por Rafael de Oliveira e foi publicado esse ano pela Tordesilhas.
JV: Henry, antes de falarmos sobre Garganta Aberta, gostaria de saber como começou sua paixão pela leitura e pela escrita. Você sempre soube que queria ser escritor? Quando percebeu que escrever livros era o que queria fazer?
HH: É ótimo conversar com você, João! Sempre fui um escritor. Desde que aprendi a ler, eu já inventava histórias, fazia quadrinhos e imaginava as capas dos meus futuros romances. Após a infância, comecei a seguir uma carreira no cinema, escrevendo, dirigindo e produzindo. Exausto pela pressão financeira desse mundo, voltei à literatura, pois ansiava por privacidade, simplicidade e controle. Ser autor me proporcionou essa proteção. Sou um artista muito inquieto, então ainda não tenho certeza se escrever livros é tudo o que quero fazer.
JV: Agora, falando de Garganta Aberta, li algumas de suas entrevistas e sei que o P-22 foi uma de suas inspirações. Mas você poderia explicar para quem está fora de Los Angeles quem foi o P-22 e como ele se conecta ao livro? Quando essa história surgiu para você? Desde o início você já imaginava que seria narrada por um leão-da-montanha e teria um estilo fragmentado, quase como em versos?
HH: O P-22 era um leão-da-montanha que atravessou a enorme rodovia 405 e viveu isolado de outros de sua espécie na área de Griffith Park e nos bairros próximos de Los Angeles. Eu me mudei para um desses bairros ao mesmo tempo, e acompanhava as notícias desse animal selvagem que vivia sozinho por perto. O P-22 se escondeu embaixo de uma casa por um tempo e, supostamente, comeu um coala do zoológico, uma jornada fascinante. Com o tempo, ele se tornou uma celebridade local. Quando deixei LA e voltei para Nova York, ainda me sentia assombrado por esse animal e pela minha surreal década na costa oeste, e para unir os dois (o personagem e essa era), sabia que esse romance era o caminho certo.
JV: O livro, além de ser um romance muito bonito, também tem um componente político, não só pela representação queer, mas também por abordar questões atuais como incêndios florestais e aspectos sociais. Você acredita que ficção/romances podem ser uma forma eficaz de tratar temas como a representação queer e questões sociais de maneira mais orgânica e menos didática?
HH: Com certeza. Especialmente em uma obra guiada pela voz [du leão1], como tentei fazer aqui. Isso me deu um personagem como um canal, uma jornada movida pela fome. Por natureza, o animal estaria enfrentando os efeitos da urbanização e das mudanças climáticas, então eu sabia que não precisaria forçar essas questões, elas emergiriam naturalmente. Eu trouxe meus próprios sentimentos de escassez, desejo e identidade de gênero para a voz [du leão], e isso se encaixou perfeitamente com a consciência do animal, o outsider.
JV: Não há muitos elementos tangíveis (literais) no livro que mostrem que o leão seja queer. Por que você tomou essa decisão?
HH: Sou grato pelo marketing, publicidade e críticos que levam leitores à obra, mas, claro, suas projeções e definições são diferentes das minhas. Estou interessado em complexidade e nuances, em vez de rótulos. Certamente, os conceitos de gênero e sexualidade de um animal selvagem estarão distantes dos da humanidade. Então, nunca seria algo como "Oi, sou um leão-da-montanha queer, slay." Em vez disso, criei um animal AMAB (designado homem ao nascer2) que fica tempo demais com a mãe, foge do pai violento, encontra amor e tragédia em uma paixão por outro leão-da-montanha do gênero masculino e acaba sendo acolhidu por uma adolescente bruxa que u valida como uma deusa feminina [Écati]. Sinceramente, não sei como poderia ter sido mais queer, mas como não é declarativo ou didático, permite que os leitores façam suas próprias descobertas e interpretações, algo que valorizo em toda arte.
JV: Garganta Aberta foi traduzido para o italiano, alemão e agora para o português. Você esperava que um romance inconvencional como esse, faria tanto sucesso e viajaria ao mundo? Como você se sente em relação a isso?
HH: É incrivelmente recompensador e alegre ver a obra encontrar públicos em outros países, já que sempre fui um ávido leitor de literatura global, e claro, é divertido ver como as traduções lidam com minhas escolhas linguísticas idiossincráticas. A ressonância de Écati [du leão-da-montanha] fala da universalidade do nosso medo atual que temos pelos animais e ao lado deles, e qualquer coisa que sirva para nos unir contra a destruição capitalista desenfreada é uma vitória, na minha opinião. Os editores internacionais têm sido adoráveis. Além disso, todos os designs (pelos quais não levo crédito, então só posso apreciar) são deslumbrantes.
Hoke é um escritor americano, e lidera a Enter>text, uma organização que realiza eventos anuais e é descrita como um "jornal literário vivo". Agradeço o autor por aceitar responder essas perguntas!
Entrevista feita via e-mail e traduzida por mim.
Optei por usar a flexão de gênero ‘‘u’’, neutro, para quando falar du leão, pois no inglês os pronomes delu são They/Them.
Nota minha.
Que incrível a entrevista. Adorei tudo. Já quero ler AGORA!
Que delícia de entrevista, João! Adorei!