Eu irei sonhar com esse livro, digo em voz alta.
Pensar nele ao acordar,
antes de pegar no sono,
ao amanhecer no caminho para o trabalho,
ao entardecer no caminho de volta também,
enquanto estiver passando meu café,
enquanto estiver amarrando meus sapatos,
durante a próxima passagem que irei escrever no meu caderno,
durante a escolha da minha próxima leitura,
no momento em que eu for pensar sobre a linguagem e na construção de textos — ou melhor — fragmentos de textos que o tempo não conseguiu vencer,
no momento em que eu for pensar nas infinitas formas de um romance e suas diferentes estruturas, no que um livro pode — ou não pode — ser,
e por fim,
quando eu questionar o poder do amor,
quando eu duvidar da força da poesia,
é dele, desse livro,
que eu irei me lembrar.
Sempre me interessei por mitologia grega, e uma das minhas matérias favoritas da faculdade era Cultura Clássica. Li fragmentos da Ilíada de Homero e conheci os 12 trabalhos de Hércules, mas nunca imaginei releituras dessas histórias focada em um romance gay.
Em Autobiografia do vermelho, um romance em versos lançado em 98, diferente do mito, a autora canadense Anne Carson mostra Héracles (Hércules) e Gerião em um romance adolescente na contemporaneidade, e não como inimigos, como no décimo trabalho de Hércules. Eles têm um relacionamento jovem, com uma intensa primeira paixão, suas belezas, inocências & monstruosidades. O livro começa com um ensaio sobre Estesícoro, poeta grego que, pela primeira vez, deu voz ao mito de Gerião. Carson comenta que os fragmentos que sobraram desse poema lírico são como se tivessem sido rasgados em pedaços, misturados com anotações, carne e letras de músicas, e postos todos dentro de uma caixa. O que sai de forma aleatória dessa caixa é o resultado dos fragmentos restantes do mito de Estesícoro, no qual ela se inspirou.
É assim que vejo o romance em versos da autora: como se o diário de um adolescente descobrindo sua sexualidade fosse rasgado em pedacinhos minúsculos, misturado com poemas, anotações em alemão, filme fotográfico, cartões postais, estudos, e gozo, e, na hora de montar esse mosaico romântico, lírico, cheio de beleza, nasceu Autobiografia do Vermelho.
Conhecemos, então, o monstro Gerião, um garoto todo vermelho & com asas. Desde pequeno ele escreve sua autobiografia — no começo, em forma de escultura, já que ainda não sabe ler e nem escrever. Teve uma infância conturbada por conta do irmão, mas sempre com o apoio de sua mãe. Na juventude, já com a pena afiada, ele conhece Héracles, um menino um pouco mais velho que faz algo quase impossível: tornar as coisas ainda mais vermelhas do que já são.
O livro é uma homenagem a Estesícoro e seu mito, contado de maneira inusitada pelo ponto de vista de Gerião; a Gertrude Stein e suas autobiografias; a Emily Dickinson e um documentário sobre ela que os personagens estão produzindo com sons de vulcões. Tudo isso é revelado em um forte filme vermelho em 35mm, numa mistura de gêneros literários, onde conhecemos todas as angústias, aventuras e desventuras de um romance que chega ao seu ápice na Argentina e no Peru, em uma espécie de triângulo amoroso, com a chegada de um novo personagem muito querido, o Ancash.
Guarda o vulcão reticente
Seu plano sempre desperto;
Jamais seus róseos intentos
Confia ao homem incerto.
Se a natureza não espalha
O que lhe contou Jeová,
Vive a natureza humana
Sem quem a venha escutar?
Sua boca muda interpele
Quem tagarela à vontade.
Guardamos um só segredo:
A imortalidade.
(Emily Dickinson, 1960, n. 1748, tradução de Helena Franco Martins.)
Quando descobri que o livro seria traduzido e lançado no Brasil em 2021 pela Editora 34, eu entrei em estado de euforia. Até entrei em contato com o tradutor da obra, o também poeta Ismar Tirelli Neto, para saber como foi o processo de tradução do livro — algo que não foi fácil. Segundo ele ‘’(...) foi um bocado trabalhoso, o processo tradutório. a carson tem uma maneira muito particular de frasear. sempre complicado verter o singular de um idioma para outro, tem sempre o risco de soar ERRADO, não torto, e mirava-se no torto’’. Fiquei obcecado por essa obra antes mesmo de lê-la. Sonhava em vermelho e nos sonhos eu cotejava a edição original sem medo de me perder no inglês.
Na edição brasileira, a capa vem de uma edição da gravura do livro Mundus subterraneus, de Athenasius Kircher, chamada ‘’Erupção do monte Etna em 1637’’. Já na capa original, a autora decidiu usar a uma ilustração do pico Orizaba, no México, feita pelo naturalista alemão Alexander Von Humboldt (1769 – 1859), fruto de uma expedição científica (vocês devem ter notado que é a foto e o ‘‘rosto’’ dessa Newsletter). O amor jovem é uma grande erupção, é vulcânico.
A autora, em 2013, lançou uma continuação de Autobiografia do Vermelho, chamada Red Doc>. Sem previsão para chegar ao Brasil.
Eu gostaria de presentear a todos com esse livro, mesmo com ciúmes. Me apaixonei por ele, queria namorá-lo, viver ao seu lado com ele na minha cabeceira.
XXXII. “Negar a existência do vermelho
é como negar a existência do mistério. A alma que assim o
fizer um dia enlouquecerá.”
Eu nunca vivi um amor adolescente, jovem ou um amor de ensino médio. Nunca fui parado no ponto de ônibus por alguém para puxar papo comigo e depois trocarmos números. Nunca passei o intervalo com um possível crush conversando sobre As vantagens de ser invisível ou a trilogia dos Jogos Vorazes. Nunca troquei cartinhas ou recadinhos entre intervalos de aulas. Nunca tive um amigo de infância que depois se transformou em um grande amor.
Durante as aulas de química e física, eu escrevia fanfics inteiras no meu caderno, com capítulos infinitos para me distrair das aulas. Era sempre em primeiro pessoa e eu sempre me colocava inconscientemente como o protagonista da história. Como eu passei a infância e a adolescência na igreja, chegou um ponto de achar que não vivia nada dessas histórias por ser um castigo de Deus por conta da minha sexualidade. Era uma maldição. Uma profecia. Sentia inveja de tudo e de todos, eu era um adolescente amargurado quando se tratava do amor. Com quem eu preciso falar para mudar a profecia? Estou falando em línguas e ninguém estava me entendendo?
Obviamente projetei no Gerião o que eu queria na adolescência. Assim como projetei no Pátroclo em A Canção de Aquiles de Madeline Miller. Assim como projeto em todos os romances que leio. Não me importava se eu iria sofrer por alguém, sentir alguma coisa era melhor do que não sentir nada (anos mais tarde, irei me arrepender de desejar isso). Eu era o Gerião. Eu era o Pátroclo. O eu adolescente precisava ser ao menos o protagonista de alguma história.
E quero estar apaixonado por alguém, disse Gerião no capitulo XL: FOTOGRAFIAS: ORIGEM DO TEMPO.
que texto lindo, João! como é boa a sensação de descobrir um livro assim, que enche nosso coração de amor e significado <3
eu tô louca pra conhecer a escrita da Anne Carson porque tinha ouvido falar muito bem dos seus ensaios, mas agora, que descobri essa outra faceta da escrita dela, fiquei ainda mais interessada.
João! <3