Viver e traduzir: uma conversa com tradutoras.
Quem traduziu o livro que você está lendo?
Traduzir é se embrenhar dentro de alguém. Abrir um espaço, também, para que esse alguém se embrenhe dentro da gente.
Pg. 55.
Sempre me interessei por esse tema, e, em algum dos meus cadernos, escrevi que o tradutor era como um barco, e o texto, uma ilha. Era ele quem me levava para lá, para o meu destino, para que eu pudesse desembarcar no livro. Para mim, a tradução é quase algo místico, mágico, uma alquimia real desenvolvida em meio a um grande esforço & trabalho. Consigo ler em inglês com certo esforço, mas não gosto e prefiro mil vezes uma tradução. E as outras línguas que não tenho conhecimento? Então eu dependo dos tradutores para manter a continuar com algo que tanto amo: ler.
Depois que vi uma mesa-redonda na FLIM (Festa Literária de Maringá), com mediação de Thays Pretti e com as escritoras e tradutoras Marília Garcia e Luci Collin, meu interesse pelo tema aumentou. Eu precisava ler algo sobre isso, discutir sobre isso.
Foi então que escolhi o ensaio — ou melhor, poemário — íntimo da tradutora e poeta argentina Laura Wittner, Viver e traduzir, da editora Bazar do Tempo, com tradução — e participação — de Paloma Vidal e Maria Cecilia Brandi, para a leitura de janeiro do meu clube. Trata-se de um livro em que a autora discorre de forma íntima sobre seu ofício de tradutora. Um diário-ensaio-poema-livro-de-memórias sobre tradução. O encontro do clube contou com a participação da tradutora — e agora amiga — Silvia Massimini Felix. Se você lê autoras latino-americanas, pode ter certeza de que algum livro delas foi traduzido por Silvia. O encontro foi muito agradável, e todos os participantes saíram ainda mais apaixonados e admirados pelo ofício da tradução.
Quando estou terminando de traduzir um romance e releio as primeiras páginas que traduzi, encontro esse estilo naif e tateante das conversas que temos com alguém que estamos conhecendo e que, mais adiante, será um grande amor, uma pessoa com quem teremos construído uma linguagem intima e comum.
Pg. 62.
Esse livro é um palimpsesto de vida e de traduções: da vida-tradução de Laura, da vida-tradução das tradutoras do livro, Paloma e Maria Cecilia. Além do texto de Laura, temos algo extra e só possível de acessar nesta edição brasileira: as notas de rodapé pessoais das tradutoras. É uma tradução conversada, como definiram Paloma e Maria Cecilia. Vocês estão entendendo a magia de tudo isso? Achei que ficaria sem tinta na caneta depois de tantos grifos e pensamentos. Achei que meus dedos iam ficar sujos de grafite para sempre. Eu quero ser tradutor da mesma forma que quero ser um romancista, será que ainda é possível? Possível, talvez sim. Fácil? De maneira nenhuma.
Desde que criei meu Instagram e comecei a partilhar literatura, tive o prazer de acompanhar algumas tradutoras, trocar ideias, ouvir falas e participar de mesas-redondas. Mas, após tudo isso, eu ainda queria mais. Qual a melhor forma de enxergar a tradução senão pelos olhos dos próprios tradutores? Convidei algumas tradutoras para responderem a mesma pergunta e fiz um compilado com as respostas. Então se vocês leram Jane Austen, Sally Rooney, Mariana Enriquez, Anne Carson, Camila Sosa Villada, entre muitos outros, essas tradutoras estão na estante de vocês.
O que a prática da tradução significa para você, além do trabalho em si?
Silvia Massimini Felix: A visão mais comum que se tem da tradução é como a simples tarefa de transpor um texto de uma língua para outra; porém, para mim, ela vai muito além disso: traduzir é criar pontes entre uma cultura e outra, é saber olhar para o alheio e conseguir, de alguma forma, torná-lo próprio. O processo de tradução é complexo: muitas vezes, o tradutor precisa se tornar invisível para recriar um bom texto, dando-lhe fluência e a ilusão de que o leitor lê uma cópia perfeita do original. Por outro lado, bem sabemos que é isto, uma ilusão, já que as escolhas do tradutor sempre passam por sua visão de mundo, e há muito dele e de suas vivências no texto de chegada. Para mim, traduzir é sempre um desafio e uma responsabilidade, mas também é um ofício que me enche de alegria <3
Julia Romeu: Alguém já disse que quem faz tradução é como o músico que segue uma partitura, mas ainda assim tem liberdade para criar em sua interpretação. Eu concordo. É inevitável que o tradutor, e em especial o tradutor literário, coloque parte de si no que está traduzindo. A tradução, afinal, é um trabalho de criação, porque a recriação também é uma criação. Para usar outra imagem, é como pegar um vaso acabado, voltar a molhar a argila e remoldá-lo. A obra criada vai ter a mesma essência (espera-se), mas vai ser uma obra nova. Traduzir não é o mesmo que escrever, mas também não é um trabalho menor -- tanto, que alguns bons escritores não são bons tradutores. Acho que já está mais do que na hora de valorizarmos mais o trabalho dos tradutores, especialmente no Brasil, onde lemos tantas obras traduzidas.
Débora Landsberg: Para mim, traduzir é permitir que os leitores acessem livros em sua língua materna, e eu considero esta leitura muito mais profunda e saborosa do que a leitura em uma língua estrangeira. Eu às vezes passo anos esperando um livro ser lançado aqui, apesar de poder lê-lo no original, porque aproveito muito mais a leitura em português. Também é ler os livros que traduzo com uma lupa que nem o próprio autor usou: talvez ele tenha colocado aquela vírgula ali por algum motivo, talvez só estivesse distraído, mas a decisão que ele tomou em dois segundos pode virar um grande debate interno para o tradutor, que às vezes se prolonga por anos, mesmo que o livro já esteja publicado. Traduzir também é remontar um texto a muitas mãos: em alguns casos, o texto volta para o tradutor após a preparação (também chamada de copidesque) e as revisões, depois de uma leitura do editor, e aí se dá um debate delicioso em caixas de comentário, em que todas (em geral, as trabalhadoras do texto são mulheres) dão excelentes sugestões para um problema até que se chegue a solução perfeita. Adoro essa colaboração e sinto falta quando não acontece.
Gisele Eberspächer: Quando traduzo, sinto que estou escrevendo um livro que li. E que li com uma intimidade imensa: em voz alta, de frente para trás e de trás para frente, procurando detalhes atrás de qualquer palavra, vírgula e novo parágrafo.
Emanuela Siqueira: Quando eu era criança, meu sonho era ser cientista ou detetive. Depois veio a vontade de ser detetive do FBI (juntou ali Scully e Starling) e em seguida eu desejei muito ser jornalista, para escrever sobre coisas que eu tivesse investigado. A escrita e a leitura sempre estiveram comigo. Aprendi a ler na idade normal da década de 1990 (em torno dos 7 anos) e meus pais, mesmo sendo pessoas semi-alfabetizadas, sempre me levavam para a biblioteca pública e me incentivaram. Eu ficava fascinada com o fato de ler histórias de lugares tão distantes das cidadezinhas que eu cresci no interior de Santa Catarina. Só depois, com o Chimamanda falando sobre os perigos de uma história única, que eu entendi o tamanho da responsabilidade e importância da tradução. As séries estadunidenses, os desenhos animados japoneses e as livros de mitologia que eu lia eram traduzidos por gente que transformava cada palavra na minha língua materna; me faziam rir, chorar ou me inspirar. Eu não fiz Letras-Inglês porque queria, mas me tornei tradutora porque desejei e carrego esse sopro de Eros comigo. Traduzir, para mim, é a minha forma de "vingança". Eu faço vingar (no sentido de "Conseguir o seu fim; ter bom êxito ou feliz resultado."), as minhas antepassadas que não tiveram acesso à palavra. Além do mais, fazer vingar palavras de outros idiomas na minha língua materna, é a minha forma de contribuir para que absolutamente nada tenha uma história única e possa, assim, reverberar. Tem dias que traduzir é exumar, falar com mortas e fantasmas, dias de responsabilidade intensa, de práticas pedagógicas, e tem dias que é só emoção, lágrimas e afeto de quem lê para quem lê. No final deu tudo certo, eu sou uma investigadora entre-línguas.
Mariana Sanchez: Traduzir é pra mim uma forma de viver vida dupla pela palavra estrangeira tornada própria.
Elisa Menezes: Significa mergulhar no texto de uma maneira muito mais profunda e complexa, experimentar um outro tipo de leitura. Além disso, traduzir, para mim, é a possibilidade de expressar e desenvolver a inventividade e a criatividade.
Regiane Winarski: Pra mim, traduzir, além do trabalho em si, é navegar por outros mundos, por histórias e sentimentos que serão um pouco depois lidos e apreciados por leitores dos mais variados tipos. Uma grande alegria!
Andréia Manfrin: A tradução é o enlace entre línguas e culturas, é o encontro entre falares e escreveres que vai muito além da subjetividade de cada um dos lados desse encontro, uma vez que estamos enredadas nas palavras que transitam entre os idiomas, carregando com elas sentidos que precisam, em alguma camada, permanecer, ainda que modificadas.
Queria agradecer a todas as tradutoras quer tiraram um tempinho para me responder. Fiquei muito feliz e grato com cada resposta. Creio que conseguimos fazer algo bonito e único — como cada tradução é. Obrigado, meninas!
Foi criado um coletivo aqui no Brasil chamado Quem Traduziu, que reúne tradutoras de todo o país, unindo forças para obter maior visibilidade na profissão, mais reconhecimento, melhor remuneração e prazos de entrega mais justos. Espero que tenham entendido minha paixão por esse ofício tão mágico — e que se apaixonem vocês também —, e sigam o Instagram o coletivo e apoie os tradutores dos livros que vocês estão lendo. Eles são a nossa ponte.
Traduzir é adivinhar. O outro.
Pg. 31.
Lindo, João!
Que linda essa imagem do barco e da ilha! Adorei essa edição, com a participação das tradutoras. Eu estava no seu clube do livro em janeiro e mudou minha forma de entender um livro....