De: averno@substack.com
Para: queridos_leitores@gmail.com
Assunto: A Idiota & Ou-ou.
Desde que li A Idiota, de Elif Batuman, em 2021, Selin, a protagonista, me acompanha todas as noites antes de dormir. É um daqueles casos que um livro cresce dentro de você com o passar do tempo e te impede de superá-lo.
O livro se passa no primeiro ano da faculdade de ‘‘Letras’’ em Harvard de Selin, estadunidense de origem turca (assim como a autora), no começo dos anos 90, quando a internet e o e-mail eram uma novidade. Acompanhamos nossa protagonista durante suas aulas com colegas peculiares (um beijo especial para Svetlana, amiga que eu gostaria de ter), e seus professores excêntricos. Em um dado momento na classe de russo, Selin conhece Ivan, e uma troca de e-mails juvenis e pseudo-intelectuais-que-servem-de-flerte acontece. Esse encontro mexe com Selin e é a chave para uma grande viagem que ela decide fazer para a Hungria na segunda metade do livro — quando o espaço universitário muda para vilarejos húngaros.
Foi tão gratificante acompanhar as angústias de Selin, sua admiração pela Linguística, suas dúvidas em relação a vida, ao amor (será mesmo amor?), seus questionamentos acadêmicos e seu sonho em ser uma escritora. É impossível não se identificar com os pensamentos de Selin durante suas aulas caso você tenha cursado Letras — ou tenha sido um adolescente. Não é um livro com reviravoltas ou plots mirabolantes, é a vida de Selin como ela é, a vida de uma jovem entrando na faculdade & redescobrindo o mundo & se redescobrindo como indivíduo.
Durante a pandemia eu me relacionei virtualmente como uma pessoa por quase três anos. Nunca nos encontramos, e, por vezes, me questiono se posso considerar o que tivemos como um namoro real — ao menos os sentimentos eram reais. Foi traumático e acabei no consultório de um psiquiatra. Em paralelo, Selin foi para um psicólogo para entender o que estava acontecendo entre ela e Ivan, e recebeu a seguinte resposta:
"Mas você e eu estamos sentados aqui, cara a cara. Somos pessoas reais. Ele não está operando no nível de uma pessoa real.
Ele não é uma pessoa real pra você. Se ele fosse uma pessoa real, você teria todas as oportunidades pra enxergar as falhas na situação — ou enxergar que ele não está presente de fato pra você.
Na verdade, porque ele existe como uma série de mensagens, ele está sempre presente, toda vez que você liga o computador.
Aposto que você lê essas mensagens mil vezes, não é?"
Não preciso dizer mais nada.
A escrita da autora é bem-humorada, inteligente, afiada e gostosa de se acompanhar, mesmo sem grandes acontecimentos durante o romance. Depois de tanto quebrar a cabeça e de me perguntar o porquê de Selin me incomodar tanto na minha primeira leitura do livro, percebi que ela era como um espelho. Os defeitos de Selin eram os meus defeitos, suas qualidades eram as minhas qualidades. Eu era A idiota.
Um dos resultados da minha obsessão pelo romance e pela autora, foi ler e assistir várias entrevistas e matérias com ela (notaram que sempre faço isso, né? Oi, Sheila Heti!). É notável o senso de humor da Elif em seus livros, mas fica mais perceptível nas entrevistas. Em uma delas (que recomendo fortemente a leitura), para a Folha de São Paulo quando o livro foi recém-lançado no Brasil, a autora diz que gostou muito da declinação feminina para o título. No original, The Idiot, faz referência direta ao livro de Dostoiévski, e isso não se perdeu com a tradução para o português, nem com a declinação.
Elif conta que o livro foi baseado em grande parte em seus diários no final dos anos 90, quando estava na faculdade, tornando um romance quase autobiográfico. Isso me inspirou, pois mantive diários e cadernos durante toda minha faculdade — e ainda mantenho, como vocês puderam ler na primeira edição da Newsletter. Outra parte favorita da entrevista e que me tocou, foi quando a autora contou: “Muitas das minhas decisões foram tentativas de replicar situações que parecessem universais da literatura. E, assim, perdi muitas oportunidades”.
No final da matéria, ela revela que tinha acabado de entregar o manuscrito da sequência de A Idiota, intitulado Either/Or, que vou comentar a seguir:
Um novo sentimento deveria ser criado e colocado ao lado de amor, tristeza, medo e angústia: ser jovem. Ou talvez, ser jovem é a junção de todos esses sentimentos. O supremo. Por isso, é impossível não se identificar novamente com Selin em mais um ano em Harvard e em mais uma ano na sua juventude. Todos seus questionamentos anteriores permanecem — eles nunca vão embora —, mas agora fazem companhia para mais outros.
Se no primeiro livro, Selin — e eu, lá 2021 quando li o romance — nos sentíamos os maiores idiotas do mundo, em Ou-ou — e em 2024 — continuamos nos sentindo, mas mais conscientes das nossas atitudes e decisões (até parece). Selin se sente traída por Ivan e pela Linguística, e para coletar pistas desse túnel escuro da juventude, ela se prende a um livro: Ou-ou, do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard. O livro questiona diretamente o que é viver uma vida ética & uma vida estética. Esses dois opostos são mostrados no livro por Selin e Svetlana, sua amiga, onde tentam descobrir o sentido de viver por meio da Literatura & Filosofia, mas de formas diferentes.
Nos anos seguintes da faculdade, Selin começa a viver experiências consideradas parte integral dessa etapa: muitos amigos, festas, empregos chatos, desilusões e experienciar a sexualidade. Assim como no primeiro livro, da metade pro final, o cenário muda: Selin vai para várias regiões da Turquia, e vivência experiências sufocantes: sexuais, sentimentais, culturais & familiares.
Assim como Selin, esse ano comecei a ir em mais festas sem me sentir culpado e experienciar minha sexualidade & a juventude de forma mais clara. Mas não podíamos repetir padrões. Eu não posso cometer os mesmos erros, eu não posso querer alguém que não me quer, eu não posso desejar alguém que mora longe novamente, eu não posso encher mais um caderno inteiro sobre uma única pessoa. Que tipo de vida eu estou vivendo? Uma vida estética? Definitivamente não. Uma vida ética? Tenho minhas dúvidas.
‘‘Uma das formas de ver a situação é que agora eu estava apaixonada por outro cara que não queria saber de mim. Claro, era um resultado que eu já tinha previsto; mas, até onde parei pra pensar, me pareceu uma melhora no status quo, já que seria mais tolerável e legítimo se o cara por quem eu estava apaixonada fosse alguém com quem eu tinha de fato feito sexo. Não deixava de ser reconfortante imaginar um futuro em que eu não estivesse pensando constantemente no Ivan — mesmo que isso implicasse substituí-lo por alguém com uma personalidade ainda pior.’’
Ler tudo isso me dava vontade de agarrar o livro e dormir ao seu lado. A escrita da Elif continuava inteligente, bem-humorada e fluída. Impossível não se sentir amigo da Selin, e amigo dos amigos dela. Por que Elif estava escrevendo outro livro sobre mim? Todas as referências teóricas citadas nos dois romances eram referências que eu gostaria de estudar. Livros que agora eu gostaria de ler. Aprender & amar, sãos as coisas mais bonitas que se pode desejar.
Ah, Selin… Quando vou te encontrar de novo enquanto como meu salgadinho Yokitos (que empesteou meu quarto com o fedor) sabor queijo? Sei que em qualquer momento posso reler os dois livros e conversar com você novamente, mas quero novas experiências e saber o que te — me aguarda para o futuro.
Além dos dois romances traduzidos por Odorico Leal, Elif publicou um livro de não ficção, chamado Os Possessos, com tradução de Luis Reyes Gil e lançado no Brasil pela editora Leya, em 2012. O livro fala sobre a relação da autora com a literatura russa e sobre a sua própria vida. Notei várias ligações com A Idiota, reforçando a ideia do romance ser quase autobiográfico. Comprei Os Possessos em uma viagem para Sorocaba, em São Paulo, e lembro dele estar em uma prateleira de saldão em uma livraria qualquer, abandonado há anos e cheio de poeira. Levei ele comigo e comecei a lê-lo naquele mesmo dia, mas acabei não finalizando a leitura, pois imaginei que faria mais sentido finalizar quando eu tivesse contato com literatura russa (por favor, se você gosta de literatura russa, leia esse livro). Elif é uma daquelas autoras que eu leria até a lista de supermercado, ela é engraçada e ao mesmo tempo melancólica.
A autora já confirmou mais outros dois livros e está nesse momento em Roma, escrevendo. Podemos acompanhar essa jornada na Newsletter da própria autora: Elif Life.
No site do American Academy in Rome, onde Elif está participando de um projeto de escrita, temos a descrição dos outros livros da série:
Descrição do Projeto:
Meu projeto é um romance chamado Camino Real, o terceiro de uma série de quatro livros planejados. Os dois primeiros romances, The Idiot (2017) e Either/Or (2022), foram ambientados em meados dos anos noventa, durante os anos de faculdade de Selin, uma narradora turco-americana semelhante a Elif. Eles narraram a determinação de Selin em se tornar uma romancista e sua estratégia para fazer isso acontecer—tentando viver uma vida que se assemelhasse aos seus romances favoritos. Camino Real é ambientado entre 2000 e 2011, na Califórnia, onde Selin se mudou após a faculdade para estudar no Centro de Estudos do Romance da Universidade de Stanford. O título do livro vem de uma estrada costeira, construída por missionários espanhóis durante a vida de Cervantes, que passa a desempenhar um grande papel na vida de Selin ao dirigir. O quarto livro de Selin, The Two Lives, terminará em 2017—o ano em que Selin completa quarenta anos, publica seu próprio primeiro romance, começa a se perguntar se os romances arruinaram sua vida e se propõe a reformar os romances de dentro para fora.
Quando esses novos livros saírem no Brasil, eu vou ter 30 anos ou mais, quase a idade que a Selin terá também, como se a autora estivesse esperando para eu ler novamente sobre minha vida em seus romances. Se eu tiver sorte, vou comentar sobre esses novos livros aqui na minha Newsletter ou em alguma outra plataforma. O que será de mim e de você daqui a 5, 10 anos? Estaremos ainda falando sobre livros? Você ainda vai estar me lendo? Ainda vou ser esse idiota?
adorei o texto! acho que vou comprar agora pelo menos a idiota
Amigo, pode me dar um mini spoiler? O Ivan aparece no segundo livro?