Os meus diários do fim do amor.
O diário de Ingrid Fagundez, de outras autoras, e os meus.
É impossível 'capturar a vida' se a gente não mantém diários.
Sylvia Plath.
Tentei manter diários desde que aprendi a ler e escrever. Tenho a memória de morar em Sinop, no Mato Grosso, entre 2005 e 2006, e de usar um caderno do Pernalonga ou dos Looney Tunes para tentar começar um diário. Eu tinha acabado de ser alfabetizado e lembro que escrevi apenas um parágrafo, pois depois o caderno sumiu. Talvez minha mãe tenha dado fim a ele por achar que era uma atividade de menina. Nunca vou saber.
O diário mais antigo que tenho guardado comigo é de 2018. Sei que tive outros, mas eles sumiram com o tempo. Esse caderno de 2018 foi um presente da minha avó, que o comprou para mim em alguma loja de departamento e que possui algumas ilustrações de Karl Lagerfeld. Comecei a usá-lo para falar das minhas leituras. Depois, passou a ser usado para eu reclamação da minha família e da minha vida. E, por fim, mais do que tudo, para falar de amor. Ou melhor, para pedir por amor.
Superficial entender o diário como apenas um receptáculo para os pensamentos privados e secretos de alguém — como um confidente surdo, mudo e analfabeto. No diário, eu não apenas me expresso mais abertamente do que eu poderia fazer com qualquer pessoa; eu me crio. O diário é um veículo para meu senso de identidade. Ele me representa como emocional e espiritualmente independente. Portanto (infelizmente), ele não registra simplesmente minha vida real e diária, mas sim — em muitos casos — oferece uma alternativa a ela.
Susan Sontag.
Todos os meninos por quem me interessai, com quem me envolvi ou por quem tive um momento de obsessão, estão nesses cadernos. Alguns tiveram apenas parágrafos escritos sobre eles, outros, páginas, e outros, três cadernos completos. A primeira vez que saí com um menino por quem eu estava apaixonado, escrevi cada detalhe desse encontro, como uma forma de capturar e revisitar aquele acontecimento tão magnífico e surreal para mim. Eu queria viver aquele dia, todos os dias. Até hoje há alguns adesivos colados nessas páginas, pois os tínhamos grudados em nossos rostos em uma festa. Vomitamos juntos naquele dia, e para mim foi a coisa mais romântica que eu tinha vivido até então.
Quando acontecia algo mais concreto, eram escritos e mais escritos de juras de amor, de ter a plena certeza de ser aquela pessoa, the one, o escolhido. Planos para serem traçados, presentes trocados, alguma mensagem enviada, uma foto 3x4 colada, um livro indicado, uma leitura conjunta. Tudo anotado. O começo de um diário de amor é sempre tão eufórico. Ingrid Fagundez diz: Meus diários falam apenas do fim. Talvez isso seja uma profecia.
Como ele teve coragem de fazer isso? Páginas rasgadas, palavras de ódio escritas repetidamente até perderem o sentido. Como é possível odiar tanto uma pessoa e querê-la tanto ao mesmo tempo? Ficamos repetitivos. Tenho a impressão de que falo a mesma coisa nos meus dois cadernos anteriores. Em algum momento, vou me cansar de escrever sobre isso?
Por que escrevi isso? Para me lembrar, é claro, mas de que exatamente eu queria me lembrar? Em que medida isso realmente aconteceu? Em alguma medida? Por que guardo um caderno? É fácil a gente se enganar sobre todos esses registros. O impulso de tomar nota das coisas é peculiarmente compulsivo, inexplicável para quem dele não compartilha, é útil apenas de maneira acidental, secundária, da maneira como qualquer compulsão tenta se justificar. Suponho que seja algo que vem do berço, ou talvez não. Embora eu tenha me sentido obrigada a tomar nota das coisas desde que tinha cinco anos, duvido que minha filha venha a fazer isso, pois ela é uma criança afortunada e tolerante, encantada com a vida tal como esta se apresenta para ela, que não tem medo de dormir, nem medo de acordar. Quem tem cadernos secretos é de uma espécie completamente diferente, são pessoas solitárias e resistentes, sempre querendo reordenar as coisas, descontentes ansiosas, crianças que aparentemente quando nasceram se afligiram com algum pressentimento de perda.
Joan Didion.
Minha avó parou de estudar na 4ª série, após aprender a ler e escrever. Ela não possui um diário e nunca teve um, mas tem um caderno de receitas, todo escrito à mão. É um caderno antigo, com a letra dela, com as receitas dela, que conta a história dela por meio da cozinha. Dei de presente um novo caderno de receitas, pois o antigo molhou. Ela está passando tudo a limpo com muito cuidado e zelo. Seria uma espécie de diário?
Sou apaixonado por diários, uso os da Plath como livro de cabeceira, tenho guardado um da Woolf e sonho em ter uma edição dos diários da Sontag e da Anaïs Nin. Meu objeto de pesquisa do mestrado não deixa de ser um diário, mas um diário de tradução, o Viver e Traduzir, da Laura Wittner. Esse gênero me rodeia, e brinco com meus melhores amigos que, se eu morrer, eles têm permissão para publicar meus cadernos pessoais. Por que me interesso tanto pelo íntimo, pelo que não pode ser visto, pela escrita de si?
Essa palavra "amor" tantas vezes repetida!... Pobrezinha de mim! Há muitos erros e seria necessário corrigir tudo. Creio que agora escrevo melhor, mas não ainda como desejaria.
Em que mãos cairá o meu diário? Até agora, só poderá interessar a mim e aos meus. Gostaria de me tornar tão importante que o meu diário viesse a despertar o interesse geral.Marie Bashkirtseff.
O livro que me inspirou a escrever esse texto foi publicado pela Fósforo, Diário do fim do amor, da Ingrid Fagundez. O livro é um mergulho na história da escrita diarística de muitas autoras e da história da própria autora. Ou melhor, a história de como esse gênero literário se tornou um ‘‘gênero feminino’’ e a história do fim de um amor de Ingrid. Será o livro de abril do nosso clube.
Uma pergunta: escrever para amar ou amar para escrever?
Faço tudo
Ao mesmo tempo
Escrevo estas linhas
Escovo os dentes
Penso na inutilidade
Do poema
Ingrid Fagundez.
Muito lindo o seu olhar pro caderno de receitas da sua vó, João. É um pouco assim que eu olho pros cadernos da minha, agora que ela já não está mais aqui - as receitas que ela mais fazia, as correções das medidas em algumas, os nomes de mulheres ao lado de outras.
Comecei a ler o livro da Ingrid e estou muito intrigada! Espero conseguir participar do encontro do seu clube.
Meu pai — como um bom padeiro —, sempre teve cadernos de receitas, me lembro de folheá-los e ver além das medidas e o modo de preparo, alguns desenhos — muitos de como ele visualizava o resultado final da confeitaria dos bolos e doces, outros feitos no tédio da cozinha, como passatempo. Continham outras anotações que na infância eram aleatórias, mas ali era uma espécie de diário e hoje enxergo isso, amei ler no seu texto essa citação de sua vó!